É certo que não bebemos
unicamente para apagar a sede ou para restabelecer um défice de hidratação. Em muitas
ocasiões bebemos ad libitum, isto é,
por prazer; porque nos sabe bem mesmo que se trate de um despretensioso copo de
água fresca; bebemos por estarmos à mesa da refeição, por nos encontrarmos em
companhia e a conviver; porque está calor ou está frio e precisamos não apenas
de ingerir líquidos, mas de experimentar aconchego. Tal como a nossa fome não é
só de pão, também a nossa sede não é só de água. Dá muito que pensar, por
exemplo, o significado antropológico da mesa, que tem um papel tão central na
construção das nossas humanidades e é realmente, na diversidade das suas
formas, medidas e feitios, um objeto transcultural. Nem por acaso, Jesus
colocou a mesa no centro da celebração da fé cristã. Porque é que existe a
mesa? Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros para tomar a refeição?
Não será apenas por razões materiais ou económicas, mas sobretudo por razões de
vida. Sentamo-nos juntos em torno do alimento, porque nos alimentamos não só da
comida, mas uns dos outros. Temos uma verdadeira necessidade da presença, da
hospitalidade, da palavra, do cuidado e do afeto dos outros. À volta da mesa
reconhecemo-nos melhor, alimentamo-nos mutuamente com alimento invisível: o da
relação. Tenho uma amiga escritora que vive sozinha, muito limitada por
problemas de saúde, e que me confessou o seguinte: «A mesa da minha cozinha tem
apenas uma cadeira, pois como sempre sozinha. Mas quando me sento para comer
repito sempre no meu coração que comer é um ato comunitário, e isso liga-me aos
meus semelhantes e conforta-me.» O que se diz do comer também é válido para o
beber. Jesus, que na ciência da sede é também o Mestre, garantiu: «Quem der de
beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca,
por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.»
(Mateus 10:42). Jesus sabe que um simples copo de água que damos ou recebemos
não é banal, não é apenas isso. Esse gesto dialoga com dimensões profundas da
existência, porque vai ao encontro daquela sede que está presente em todo o ser
humano, que é a sede de relação, de aceitação e de amor. De facto, trazemos em
nós muitas sedes. Não as desprezemos como se não fossem matéria existencial e
espiritual que merecesse a nossa atenção. Não fujamos delas como se não
tivessem nada de Deus para revelar-nos. Pelo contrário. Gastemos tempo a
rezá-las. A sede é um património biográfico que somos chamados a reconhecer e a
agradecer. Ela vem connosco desde a infância, acompanha os nossos anos de
formação, irrompe de forma diversa a vida adulta, amadurece ao mesmo tempo que
nós, envelhece, muda de nome e de sentido e persiste. A sede é a roda do oleiro
onde Deus nos molda, é o interior das mãos amorosas de Deus buscando
esperançosamente formas novas para dizer a vida, é a pele de Deus tocando o
vaso que somos. Talvez ainda não tenhamos conseguido agradecer a Deus a nossa
sede, o bem, o caminho, as fontes que através dela Deus tem feito chegar à
nossa vida. Coloquemos em Deus a nossa sede.
(in “Elogio da Sede” –
D. José Tolentino Mendonça)