quinta-feira, 15 de novembro de 2018

«O que tem sede aproxime-se…» (Ap. 22,17)

É certo que não bebemos unicamente para apagar a sede ou para restabelecer um défice de hidratação. Em muitas ocasiões bebemos ad libitum, isto é, por prazer; porque nos sabe bem mesmo que se trate de um despretensioso copo de água fresca; bebemos por estarmos à mesa da refeição, por nos encontrarmos em companhia e a conviver; porque está calor ou está frio e precisamos não apenas de ingerir líquidos, mas de experimentar aconchego. Tal como a nossa fome não é só de pão, também a nossa sede não é só de água. Dá muito que pensar, por exemplo, o significado antropológico da mesa, que tem um papel tão central na construção das nossas humanidades e é realmente, na diversidade das suas formas, medidas e feitios, um objeto transcultural. Nem por acaso, Jesus colocou a mesa no centro da celebração da fé cristã. Porque é que existe a mesa? Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros para tomar a refeição? Não será apenas por razões materiais ou económicas, mas sobretudo por razões de vida. Sentamo-nos juntos em torno do alimento, porque nos alimentamos não só da comida, mas uns dos outros. Temos uma verdadeira necessidade da presença, da hospitalidade, da palavra, do cuidado e do afeto dos outros. À volta da mesa reconhecemo-nos melhor, alimentamo-nos mutuamente com alimento invisível: o da relação. Tenho uma amiga escritora que vive sozinha, muito limitada por problemas de saúde, e que me confessou o seguinte: «A mesa da minha cozinha tem apenas uma cadeira, pois como sempre sozinha. Mas quando me sento para comer repito sempre no meu coração que comer é um ato comunitário, e isso liga-me aos meus semelhantes e conforta-me.» O que se diz do comer também é válido para o beber. Jesus, que na ciência da sede é também o Mestre, garantiu: «Quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.» (Mateus 10:42). Jesus sabe que um simples copo de água que damos ou recebemos não é banal, não é apenas isso. Esse gesto dialoga com dimensões profundas da existência, porque vai ao encontro daquela sede que está presente em todo o ser humano, que é a sede de relação, de aceitação e de amor. De facto, trazemos em nós muitas sedes. Não as desprezemos como se não fossem matéria existencial e espiritual que merecesse a nossa atenção. Não fujamos delas como se não tivessem nada de Deus para revelar-nos. Pelo contrário. Gastemos tempo a rezá-las. A sede é um património biográfico que somos chamados a reconhecer e a agradecer. Ela vem connosco desde a infância, acompanha os nossos anos de formação, irrompe de forma diversa a vida adulta, amadurece ao mesmo tempo que nós, envelhece, muda de nome e de sentido e persiste. A sede é a roda do oleiro onde Deus nos molda, é o interior das mãos amorosas de Deus buscando esperançosamente formas novas para dizer a vida, é a pele de Deus tocando o vaso que somos. Talvez ainda não tenhamos conseguido agradecer a Deus a nossa sede, o bem, o caminho, as fontes que através dela Deus tem feito chegar à nossa vida. Coloquemos em Deus a nossa sede.

(in “Elogio da Sede” – D. José Tolentino Mendonça)

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Quem és Tu, doce Luz?

Quem és Tu, doce luz que me inundas
e iluminas a escuridão do meu coração? 
Tu que me conduzes pela mão como uma mãe 
e, se me largares, não conseguirei dar mais um passo, 
Tu és o espaço que envolve o meu ser e o guarda em si, 
Abandonado por Ti, tombaria no abismo do nada
de onde me tiras para me elevar até à luz. 
Tu, mais próximo de mim que eu de mim próprio, 
mais interior que o meu íntimo 
e, contudo, inatingível e desconhecido, 
ultrapassando todo o nome: 
Espírito Santo - Amor eterno! 

(Edith Stein - "Cartas a Deus, as mais belas orações cristãs" - Philippe Capelle)


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

São Francisco renuncia a tudo para seguir Cristo...

O pai de Francisco queria que ele comparecesse perante o bispo para renunciar a todos os seus direitos de herdeiro, e que lhe restituísse o que ainda possuía. Como verdadeiro amante da pobreza, Francisco prestou-se de boa vontade à cerimônia, apresentou-se no tribunal do bispo e, sem esperar um momento nem hesitar sobre fosse o que fosse, sem esperar por uma ordem nem pedir qualquer explicação, despiu todas as suas roupas e entregou-as a seu pai. [...] A seguir, cheio de fervor e levado pela embriaguez espiritual, descalçou os sapatos e, completamente nu perante a assistência, declarou a seu pai: «Até agora chamei-te pai na Terra; doravante poderei dizer com segurança: "Pai Nosso que estais no Céu", pois foi a Ele que confiei o meu tesouro e entreguei a minha fé».
O bispo, homem santo e muito digno, chorava de admiração ao ver os excessos a que o levava o seu amor a Deus; levantou-se, tomou o jovem nos braços, cobriu-o com o seu manto e mandou buscar alguma coisa para lhe vestir. Trouxeram-lhe um pobre manto de burel de um camponês que estava ao serviço do bispo. Francisco recebeu-o com gratidão e, apanhando em seguida do chão um pedaço de giz, traçou nele uma cruz: a veste significava este homem crucificado, este pobre meio despido. Foi assim que o servidor do Grande Rei ficou nu para caminhar atrás do seu Senhor, pregado à cruz na sua nudez.

São Boaventura (1221-1274), franciscano, doutor da Igreja
(A Vida de São Francisco, Legenda major, cap. 2)